“Alô? Não. Infelizmente, estamos
com a nossa capacidade máxima”, explica ao telefone, Júlia Lopes, assistente
social do Lar Torres de Melo. São 214 idosos, sendo 112 mulheres entre 60 e 80
anos. Os dados ficam colados no mural da sala da assistente social. Ela falava
sobre o cotidiano dos idosos, quando dona Maria Joana da Conceição, 76, interrompeu
a conversa. A senhora vem pedir músicas para colocar na caixinha luminosa que
traz, alegre. Dona Joana mora no Lar há 14 anos e leva a gente até a ala das
mulheres, onde ficam os quartos das internas, inclusive o seu.
As moradoras do Lar têm muitas experiências em comum, entre elas o fato de suas vidas as terem
conduzido ao Lar: infância de trabalho, sem bonecas, sem ou com pouco acesso a
educação, algumas das mãos calejadas agora se dedicam ao crochê e a segurar
rádios ou revistas. Vestida conversou
com algumas delas, buscando resgatar essas memórias femininas. Aos poucos,
foram revelando os valores de seus tempos, a aceitação ou recusa deles, e o
significado que guardam para família, trabalho e relacionamentos.
Essas são memórias guardadas ou reveladas apenas em
conversas informais, memórias que contam suas trajetórias. “Cada história
resgatada é um olhar que se soma aos olhares sobre o mundo. Resgatar as
histórias das mulheres é incluir e articular a maneira feminina de estar nesse
mundo, compreendê-lo e construí-lo”, explica Zilda Kessel, especialista em Museologia
e formadora no Museu da Pessoa. Para as jovens de hoje, virão os estranhamentos
ou as concordâncias com essas vidas.
Retratos guardados na
memória
No caminho rumo aos quartos, que passa por corredores
arborizados, floridos, dona Maria Joana conta que os filhos sempre a visitam.
Às vezes, vai para a casa deles, mas diz que prefere ficar no Lar. “Eu acho
melhor aqui, sou muito bem tratada, graças a Deus”. Ela recorda que chegou ao
Lar Torres de Melo, em uma cadeira de rodas. “Ai me tratei, fiquei boa da
perna”, alegra-se. Nascida no município cearense de Viçosa, veio para Fortaleza
aos 30 anos. A conversa rendeu. Lembranças da infância e do casamento com o
marido ciumento, 30 anos mais velho que ela, não pareceram perturbá-la.
O trabalho pesado, na roça, começou cedo, aos nove anos. Hoje
dona Maria Joana expõe que não pode mais trabalhar. “Eu nunca fui uma pessoa
que brincava, nunca tive estudo nem nada”, atesta. Casou-se com 16 anos. Hoje,
estranha como o casamento é encarado como regra. “Rapaz, o pessoal diz que
casar é tão bom. Eu sei lá! A vida de solteira é melhor. Vai pra onde quer, faz
o que quer”, critica. Dona Maria Joana ressalta que o marido tinha ciúmes até
da roupa com a qual ela saía vestida. “Ai nós ‘ia’ nos tapas. Ave Maria, era
raiva demais. Ele era ruim, machista. Eu nova e ele idoso”, ressente-se.
Sob os óculos, quebrados de uma perna, afasta o pensamento e
agradece a Deus pelos bons filhos. Ela calcula que após dez anos, teve outro
relacionamento. “Tava com a minha família criada já. Depois de 30 anos, quis
mais ter filho não”, decidiu. Gostava muito de forró, confessa. E a caixinha de
som que carrega, confirma. “Aqui mesmo, tinha festa”, lembra. Com pouca
paciência, explode com um senhor que lhe pede cigarros. Acalma-se e conta sobre
o agora. “Eu gosto daquele homem que vem ali, na cadeira de rodas”. É seu
Osmano, 79, que se ajunta à conversa já no fim.
No quarto ao lado de dona Maria Joana, mora Tiana Rodrigues,
74. Convidada para conversar, ela diz não lembrar de muitas coisas. A
historiadora Zilda Kessel esclarece que “lembrar possibilita mirar o próprio
caminho, recontar. É comum convidarmos alguém a dar uma entrevista e a pessoa
dizer ‘não lembro nada’”. Foi assim com dona Tiana, mas aos poucos, a fala
infantil foi contando.
Com mais de duas décadas no Lar e a saúde debilitada, dona
TIana não guarda sorrisos. “Sem a saúde, a gente não é nada. Já levei 13
quedas”, quantifica. As cenas de uma fazenda em Quixadá, interior do Ceará onde
nasceu, aos poucos vão sendo narradas por ela. “Eu ia pro açude, passava o dia
tomando banho. Eu nunca andei me arrumando. Quem me arrumava era minha
madrinha”, afirma. A infância foi de trabalho, mas também divertida, conforme
classifica. “Trabalhava com agricultura, de fazer queijo, carregar água para os
trabalhadores, amarração de gado. E tinha cantoria, brincadeira de boi, ia pra
festa, pra todo lugar”, elenca.
Não casou, faz questão de ressaltar. “Nunca namorei, vivi a
vida assim, trabalhando dum canto pro outro. Aqui teve um bicho ‘véi’ que quis
beijar na minha boca, eu tive foi raiva dele”, indigna-se. Fala também da
viagem que fez ao Rio de Janeiro. “Porque lá é a cidade maravilhosa, né?”. Ler
jornal, ler revista, participar das atividades da casa, cantar, assistir “os
artistas” e ouvir rádio. Coisas que entretém dona Tiana. Ela, que gosta do
Roberto Carlos, acrescenta que passa a noite acordada ouvindo rádio. “De
primeiro, na Ceará Rádio Clube, a gente telefonava pedindo música, ai tocava e
a gente ficava feliz”, abre um sorriso saudosista.
Cultivar lembranças
Passear pelas lembranças femininas, mais do que entender
como essas mulheres chegaram até hoje, é resgatar histórias individuais de vida
que podem mostrar diferenças de geração. Zilda Kessel fala a respeito.
“Resgatar e partilhar memórias possibilita às pessoas ver o mundo de outro
jeito, de outros ângulos, considerar outras variáveis, aprender com outras
experiências e com outros olhares”, pontua. Ela explana que essas
mulheres não estão excluídas da memória coletiva, “apenas as suas
experiências, por não serem objeto do interesse, permanecem com elas. Ninguém
lembra sozinho. O processo de lembrar diz respeito ao diálogo e ao encontro com
alguém disposto e interessado pela partilha, interessado em ouvir”.
Para esse exercício de lembrar, convidamos também dona Maria
de Nazaret, 73. Ela ri ao dizer que já está velhinha. Desde 2003, reside no Lar
Torres de Melo. “Eu tava acostumada a morar só. Adoeci, ai como é que ia
trabalhar doente, né? Fiquei boa aqui”, destaca. Também do interior do estado,
Juazeiro do Norte, migrou para Acopiara e depois para Fortaleza. A mãe de dona
Nazaret era lavadeira e o pai, vendedor. “Cheguei a ir na escola, mas num
aprendi nada. Pra quê? Quando eu quero ir pro centro, minha sobrinha vai
comigo”.
“Filha, eu não tive infância. Mas eu não sou arrependida.
Trabalhava. Naquela época, a gente tomava conta de criança pra brincar”.
Comenta que nunca teve tempo nem dinheiro para bonecas. Tornou-se babá, depois
copeira. “Foi quando passei a cozinhar, ai pronto... Ai gostei!”, anima-se.
Observa que pouco namorou. “Eu num tinha tempo pra perder, não. Não casei. Eu
queria trabalhar pra ter meu dinheiro. A gente trabalhando, sem ninguém pra aperrear
é melhor”, opina.
Dona Nazaret teve um filho, que morreu um mês depois de
nascer. Ela lembra claramente o dia: 02 de janeiro de 1969. Após o falecimento,
conversou consigo mesmo. “Olhe... O pai do meu menino foi embora. Ele era
casado, ele tinha a esposa dele. Nasceu o meu menino, mas Nossa Senhora levou.
Eu não vou mais procurar filho, não. Procurar menino, sem ter pai pra criar. Eu
trabalhando nas casas. Muito obrigada, nosso senhor porque o senhor fez isso
comigo. Muito obrigada mesmo”, emociona-se ao reconstruir na mente a cena.
Nazaret era apaixonada pelo pai do filho. “O nome dele era
Geraldo. Fiquei só até quando nasceu o meu menino. Era tão bom! Era uma
beleza!”, gargalha. “Quando a gente casa, que tem um marido bom, até que ainda
vai, e quando o marido é ruim?” No Lar, conheceu quem lhe arranca sorrisos. Seu
Vitorino, 63, mais novo que ela dez anos. “Conheci, tai como eu conheci! Quando
eu cheguei aqui, o que tu acha? Já velhinha”, encabula-se.
“Toda pessoa tem uma história única”, resume Zilda Kessel.
Ela defende que a partir da história de vida de cada um, é possível compreender
vários aspectos, “os tempos, os espaços, as instituições, os grupos de que esta
pessoa fez/faz parte”. Adriana G. Piscitelli, no artigo “Tradição oral, memória
e gênero”, explica que, em sua maioria, as lembranças femininas estão
relacionadas aos elementos familiares, domésticos, e da vida particular, pois
estão historicamente colocadas para eles. “Afirmam também que as lembranças das
mulheres preservam temas integrados num domínio no qual o afetivo e o individual
são fundamentais”, escreve.
Convivências
Os idosos que moram no Lar Torres de Melo, além das visitas,
convivem com idosos do entorno. É o Programa Conviver, de que fazem parte cerca
de 100 idosos que chegam pela manhã e ficam até a noite. “Só não dormem”, frisa
a colaboradora Karine Holanda. Ela destaca que esses idosos e idosas participam
de todas as atividades e recebem alimentação. Rocicleia Cavalcante, 76,
pensionista e dona de casa, faz parte do programa. Ela passa praticamente o dia
inteiro pelo Lar. É voluntária responsável pelo bazar da instituição. O bazar
recebe a doação de roupas, calçados, e o dinheiro se volta para a instituição,
como confirma. “Os produtos são oferecidos às visitas”, atesta.
Saindo do bazar, basta caminhar um pouco para voltar a ala
dos quartos. Num deles, dona Izabel Sampaio, 85, preparava um lanche com mamão,
enquanto ouvia a colega de quarto reclamar que perdera um documento. Quando
termina a merenda, aceita o convite de entrevista de Vestida. No banco em frente ao quarto, inicia a conversa.
Piauiense de Teresina, dona Izabel morava com a bisneta
adolescente, antes de ir para a instituição, há 9 anos. “Gosto de morar aqui.
Vim pra cá porque eu tava doente, e aqui tem médico, eu tenho me tratado”,
salienta. Coração crescido, hipertensão e artrose. São os males de que padece
dona Izabel. “A infância foi normal de menina pobre. Minha mãe perdeu a mãe
muito cedo, e o pai, que ficou, se entreteve na cachaça”. Com dez anos, ela já
trabalhava, cuidando de crianças, “olhando menino dos outros...”.
Mocinha, gostava de ir dançar nas matinés, seguida de baile
com orquestra. “Namorar com o rapaz, era só assim, de gostar lá de longe. Num tinha esse negócio de chegar, abraçar,
beijar, não”, diferencia. Não concorda com o modo que as meninas se comportam
hoje. Choque de gerações. “A menina tá com 12 pra 13 anos, já pode fazer sexo
com o namorado. Quando ela achar o homem mesmo que ela vai gostar, que ela vai
se casar, ai ela fica arrependida de ter feito o que ela fez, né?”, opina. Ela
casou aos 18 anos, com o primeiro namorado. Foram 11 filhos, dos quais, três já
morreram.
Uma colega vem lhe trazer raspas de rapadura. Ela relembra,
olhando para o punhado de rapadura na mão, que ficou viúva em 1958, e chegou à
Fortaleza dois anos depois. “Toda vida eu trabalhei fora, porque ele adoeceu.
Ai ficou eu sendo o homem e a mulher. Eu vim pra cá, caçar uma melhora”. Com
cinco filhos pequenos, teve outro relacionamento aos 35 anos. “E o outro que eu
tive morreu. Ele num bebia. Adoeceu da cabeça, mas não fazia mal a ninguém,
não”, se entristece. Na meia-idade preocupou-se em pagar, como contribuinte
individual, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), para que tivesse o
benefício da aposentadoria na velhice. “Hoje,
é o que me ajuda, né?”, alivia-se.
De dentro pra fora
A colaboradora do Lar Torres de Melo Karine Holanda assinala
que as mulheres participam mais das atividades como pintura, leitura, oficina
de memória. “São só mulheres”, enfatiza. Segundo ela, os homens não realizam
trabalhos domésticos, já algumas idosas sim. “Tem muita disposição. Lavam sua
própria roupa, limpam o quarto. O que é um reflexo e extensão do cotidiano
social”, avalia. Reflexos de uma vida condicionada a esses trabalhos. Zilda
Kessel conclui que não dá para diferenciar memória feminina e memória masculina.
“Penso que há muitos grupos e agrupamentos possíveis. Penso também que um mesmo
acontecimento pode ser percebido de maneiras absolutamente diversas por um
mesmo gênero”, compreende.
A maior parte dos idosos internos está na faixa etária de 81
a 90 anos, são 49% entre homens e mulheres. Cerca de metade, fica na
enfermaria, como pontua a funcionária Karine Holanda. “Porque eles são
dependentes de alguma forma. De andar, de comer, de se locomover. Lá, têm mais
cuidados”, define. Segundo dados do setor de assistência social Lar Torres de
Melo, 40% dos idosos não mantêm contato com familiares, sendo que 53% têm
filhos.
A filha de dona Francisca Camelo, 68, sempre leva os netos
para visitá-la. “Carregaram a vó”, reclamam os pequenos. Depois de dois anos no
Lar, ela conta que está acostumando-se. “Mas quando cheguei aqui e não conhecia
ninguém, eu ficava até com vergonha”, balbucia. Voz calma, quase de menina,
reitera na fala a cada momento que tem fé.
“Eu tinha 12 anos quando aceitei Jesus”, lembra. O marido faleceu e,
desde então, ficou preocupada. Caiu doente também. Ela relata que a médica
dizia que ela não iria resistir. “Isso é
tão crente, que nem morrer num morreu”, ri-se ao repetir o que disseram dela
quando estava adoentada e se curou.
De São Joaquim, interior do Ceará, dona Francisca remonta ao
passado. Com 12 anos, lavava e engomava para uma família abastada. Com 14,
começou a namorar. “Quando arrumava namorado, num era só um, não. Mamãe dizia:
‘Isso é tão doida, que num arruma nem casamento’”. Dos 15, lhe vem a lembrança
dos forrós. “Tinha os dias animados, que o pessoal”. Com 18, casou. “Marido
bebia cachaça e deixou. Depois foi um grande empregado da palavra de Deus”.
Franzina, diz que a mãe falava que ela tinha já nascido doente
dos nervos. Fica escutando o rádio. Ela fala sobre o agora. Identifica que hoje,
principalmente uma viúva, tem que se cuidar. “Todo homem véi, quer frescar com
a gente, quer andar agarrado. E se a gente for confirmar, nunca fica uma mulher
completa”, expõe. Agarrada a um rádio sintonizado a um programa evangélico,
lembra que só concluiu o primeiro ano do ensino fundamental, mas lê muito bem a
Bíblia. “Hoje, eu leio qualquer palavra”, assegura feliz.
Essas mulheres representam uma geração e sua diversidade.
Apesar de nenhuma ter tido envolvimento com movimentos ou grupos feministas, algumas
delas, possuem visões questionadoras, forjando resistência no próprio
cotidiano. Tiveram posturas de resistência contra a opressão - fosse de gênero
ou de classe, fosse o ciúme ou violência praticada pelos maridos, ou fossem
valores sociais estabelecidos como a obrigatoriedade do casamento para
constituir família.