cotidiano

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Uma partilha de memórias femininas


 “Alô? Não. Infelizmente, estamos com a nossa capacidade máxima”, explica ao telefone, Júlia Lopes, assistente social do Lar Torres de Melo. São 214 idosos, sendo 112 mulheres entre 60 e 80 anos. Os dados ficam colados no mural da sala da assistente social. Ela falava sobre o cotidiano dos idosos, quando dona Maria Joana da Conceição, 76, interrompeu a conversa. A senhora vem pedir músicas para colocar na caixinha luminosa que traz, alegre. Dona Joana mora no Lar há 14 anos e leva a gente até a ala das mulheres, onde ficam os quartos das internas, inclusive o seu.

As moradoras do Lar têm muitas experiências em comum,  entre elas o fato de suas vidas as terem conduzido ao Lar: infância de trabalho, sem bonecas, sem ou com pouco acesso a educação, algumas das mãos calejadas agora se dedicam ao crochê e a segurar rádios ou revistas. Vestida conversou com algumas delas, buscando resgatar essas memórias femininas. Aos poucos, foram revelando os valores de seus tempos, a aceitação ou recusa deles, e o significado que guardam para família, trabalho e relacionamentos.

Essas são memórias guardadas ou reveladas apenas em conversas informais, memórias que contam suas trajetórias. “Cada história resgatada é um olhar que se soma aos olhares sobre o mundo. Resgatar as histórias das mulheres é incluir e articular a maneira feminina de estar nesse mundo, compreendê-lo e construí-lo”, explica Zilda Kessel, especialista em Museologia e formadora no Museu da Pessoa. Para as jovens de hoje, virão os estranhamentos ou as concordâncias com essas vidas.

Retratos guardados na memória
No caminho rumo aos quartos, que passa por corredores arborizados, floridos, dona Maria Joana conta que os filhos sempre a visitam. Às vezes, vai para a casa deles, mas diz que prefere ficar no Lar. “Eu acho melhor aqui, sou muito bem tratada, graças a Deus”. Ela recorda que chegou ao Lar Torres de Melo, em uma cadeira de rodas. “Ai me tratei, fiquei boa da perna”, alegra-se. Nascida no município cearense de Viçosa, veio para Fortaleza aos 30 anos. A conversa rendeu. Lembranças da infância e do casamento com o marido ciumento, 30 anos mais velho que ela, não pareceram perturbá-la.

O trabalho pesado, na roça, começou cedo, aos nove anos. Hoje dona Maria Joana expõe que não pode mais trabalhar. “Eu nunca fui uma pessoa que brincava, nunca tive estudo nem nada”, atesta. Casou-se com 16 anos. Hoje, estranha como o casamento é encarado como regra. “Rapaz, o pessoal diz que casar é tão bom. Eu sei lá! A vida de solteira é melhor. Vai pra onde quer, faz o que quer”, critica. Dona Maria Joana ressalta que o marido tinha ciúmes até da roupa com a qual ela saía vestida. “Ai nós ‘ia’ nos tapas. Ave Maria, era raiva demais. Ele era ruim, machista. Eu nova e ele idoso”, ressente-se.

Sob os óculos, quebrados de uma perna, afasta o pensamento e agradece a Deus pelos bons filhos. Ela calcula que após dez anos, teve outro relacionamento. “Tava com a minha família criada já. Depois de 30 anos, quis mais ter filho não”, decidiu. Gostava muito de forró, confessa. E a caixinha de som que carrega, confirma. “Aqui mesmo, tinha festa”, lembra. Com pouca paciência, explode com um senhor que lhe pede cigarros. Acalma-se e conta sobre o agora. “Eu gosto daquele homem que vem ali, na cadeira de rodas”. É seu Osmano, 79, que se ajunta à conversa já no fim.

No quarto ao lado de dona Maria Joana, mora Tiana Rodrigues, 74. Convidada para conversar, ela diz não lembrar de muitas coisas. A historiadora Zilda Kessel esclarece que “lembrar possibilita mirar o próprio caminho, recontar. É comum convidarmos alguém a dar uma entrevista e a pessoa dizer ‘não lembro nada’”. Foi assim com dona Tiana, mas aos poucos, a fala infantil foi contando.

Com mais de duas décadas no Lar e a saúde debilitada, dona TIana não guarda sorrisos. “Sem a saúde, a gente não é nada. Já levei 13 quedas”, quantifica. As cenas de uma fazenda em Quixadá, interior do Ceará onde nasceu, aos poucos vão sendo narradas por ela. “Eu ia pro açude, passava o dia tomando banho. Eu nunca andei me arrumando. Quem me arrumava era minha madrinha”, afirma. A infância foi de trabalho, mas também divertida, conforme classifica. “Trabalhava com agricultura, de fazer queijo, carregar água para os trabalhadores, amarração de gado. E tinha cantoria, brincadeira de boi, ia pra festa, pra todo lugar”, elenca.

Não casou, faz questão de ressaltar. “Nunca namorei, vivi a vida assim, trabalhando dum canto pro outro. Aqui teve um bicho ‘véi’ que quis beijar na minha boca, eu tive foi raiva dele”, indigna-se. Fala também da viagem que fez ao Rio de Janeiro. “Porque lá é a cidade maravilhosa, né?”. Ler jornal, ler revista, participar das atividades da casa, cantar, assistir “os artistas” e ouvir rádio. Coisas que entretém dona Tiana. Ela, que gosta do Roberto Carlos, acrescenta que passa a noite acordada ouvindo rádio. “De primeiro, na Ceará Rádio Clube, a gente telefonava pedindo música, ai tocava e a gente ficava feliz”, abre um sorriso saudosista.

Cultivar lembranças
Passear pelas lembranças femininas, mais do que entender como essas mulheres chegaram até hoje, é resgatar histórias individuais de vida que podem mostrar diferenças de geração. Zilda Kessel fala a respeito. “Resgatar e partilhar memórias possibilita às pessoas ver o mundo de outro jeito, de outros ângulos, considerar outras variáveis, aprender com outras experiências e com outros olhares”, pontua. Ela explana que essas mulheres não estão excluídas da memória coletiva, “apenas as suas experiências, por não serem objeto do interesse, permanecem com elas. Ninguém lembra sozinho. O processo de lembrar diz respeito ao diálogo e ao encontro com alguém disposto e interessado pela partilha, interessado em ouvir”.

Para esse exercício de lembrar, convidamos também dona Maria de Nazaret, 73. Ela ri ao dizer que já está velhinha. Desde 2003, reside no Lar Torres de Melo. “Eu tava acostumada a morar só. Adoeci, ai como é que ia trabalhar doente, né? Fiquei boa aqui”, destaca. Também do interior do estado, Juazeiro do Norte, migrou para Acopiara e depois para Fortaleza. A mãe de dona Nazaret era lavadeira e o pai, vendedor. “Cheguei a ir na escola, mas num aprendi nada. Pra quê? Quando eu quero ir pro centro, minha sobrinha vai comigo”.

“Filha, eu não tive infância. Mas eu não sou arrependida. Trabalhava. Naquela época, a gente tomava conta de criança pra brincar”. Comenta que nunca teve tempo nem dinheiro para bonecas. Tornou-se babá, depois copeira. “Foi quando passei a cozinhar, ai pronto... Ai gostei!”, anima-se. Observa que pouco namorou. “Eu num tinha tempo pra perder, não. Não casei. Eu queria trabalhar pra ter meu dinheiro. A gente trabalhando, sem ninguém pra aperrear é melhor”, opina.

Dona Nazaret teve um filho, que morreu um mês depois de nascer. Ela lembra claramente o dia: 02 de janeiro de 1969. Após o falecimento, conversou consigo mesmo. “Olhe... O pai do meu menino foi embora. Ele era casado, ele tinha a esposa dele. Nasceu o meu menino, mas Nossa Senhora levou. Eu não vou mais procurar filho, não. Procurar menino, sem ter pai pra criar. Eu trabalhando nas casas. Muito obrigada, nosso senhor porque o senhor fez isso comigo. Muito obrigada mesmo”, emociona-se ao reconstruir na mente a cena. 

Nazaret era apaixonada pelo pai do filho. “O nome dele era Geraldo. Fiquei só até quando nasceu o meu menino. Era tão bom! Era uma beleza!”, gargalha. “Quando a gente casa, que tem um marido bom, até que ainda vai, e quando o marido é ruim?” No Lar, conheceu quem lhe arranca sorrisos. Seu Vitorino, 63, mais novo que ela dez anos. “Conheci, tai como eu conheci! Quando eu cheguei aqui, o que tu acha? Já velhinha”, encabula-se.

“Toda pessoa tem uma história única”, resume Zilda Kessel. Ela defende que a partir da história de vida de cada um, é possível compreender vários aspectos, “os tempos, os espaços, as instituições, os grupos de que esta pessoa fez/faz parte”. Adriana G. Piscitelli, no artigo “Tradição oral, memória e gênero”, explica que, em sua maioria, as lembranças femininas estão relacionadas aos elementos familiares, domésticos, e da vida particular, pois estão historicamente colocadas para eles. “Afirmam também que as lembranças das mulheres preservam temas integrados num domínio no qual o afetivo e o individual são fundamentais”, escreve.

Convivências
Os idosos que moram no Lar Torres de Melo, além das visitas, convivem com idosos do entorno. É o Programa Conviver, de que fazem parte cerca de 100 idosos que chegam pela manhã e ficam até a noite. “Só não dormem”, frisa a colaboradora Karine Holanda. Ela destaca que esses idosos e idosas participam de todas as atividades e recebem alimentação. Rocicleia Cavalcante, 76, pensionista e dona de casa, faz parte do programa. Ela passa praticamente o dia inteiro pelo Lar. É voluntária responsável pelo bazar da instituição. O bazar recebe a doação de roupas, calçados, e o dinheiro se volta para a instituição, como confirma. “Os produtos são oferecidos às visitas”, atesta.

Saindo do bazar, basta caminhar um pouco para voltar a ala dos quartos. Num deles, dona Izabel Sampaio, 85, preparava um lanche com mamão, enquanto ouvia a colega de quarto reclamar que perdera um documento. Quando termina a merenda, aceita o convite de entrevista de Vestida. No banco em frente ao quarto, inicia a conversa.

Piauiense de Teresina, dona Izabel morava com a bisneta adolescente, antes de ir para a instituição, há 9 anos. “Gosto de morar aqui. Vim pra cá porque eu tava doente, e aqui tem médico, eu tenho me tratado”, salienta. Coração crescido, hipertensão e artrose. São os males de que padece dona Izabel. “A infância foi normal de menina pobre. Minha mãe perdeu a mãe muito cedo, e o pai, que ficou, se entreteve na cachaça”. Com dez anos, ela já trabalhava, cuidando de crianças, “olhando menino dos outros...”.

Mocinha, gostava de ir dançar nas matinés, seguida de baile com orquestra. “Namorar com o rapaz, era só assim, de gostar lá de longe.  Num tinha esse negócio de chegar, abraçar, beijar, não”, diferencia. Não concorda com o modo que as meninas se comportam hoje. Choque de gerações. “A menina tá com 12 pra 13 anos, já pode fazer sexo com o namorado. Quando ela achar o homem mesmo que ela vai gostar, que ela vai se casar, ai ela fica arrependida de ter feito o que ela fez, né?”, opina. Ela casou aos 18 anos, com o primeiro namorado. Foram 11 filhos, dos quais, três já morreram.

Uma colega vem lhe trazer raspas de rapadura. Ela relembra, olhando para o punhado de rapadura na mão, que ficou viúva em 1958, e chegou à Fortaleza dois anos depois. “Toda vida eu trabalhei fora, porque ele adoeceu. Ai ficou eu sendo o homem e a mulher. Eu vim pra cá, caçar uma melhora”. Com cinco filhos pequenos, teve outro relacionamento aos 35 anos. “E o outro que eu tive morreu. Ele num bebia. Adoeceu da cabeça, mas não fazia mal a ninguém, não”, se entristece. Na meia-idade preocupou-se em pagar, como contribuinte individual, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), para que tivesse o benefício da aposentadoria na velhice.  “Hoje, é o que me ajuda, né?”, alivia-se.

De dentro pra fora
A colaboradora do Lar Torres de Melo Karine Holanda assinala que as mulheres participam mais das atividades como pintura, leitura, oficina de memória. “São só mulheres”, enfatiza. Segundo ela, os homens não realizam trabalhos domésticos, já algumas idosas sim. “Tem muita disposição. Lavam sua própria roupa, limpam o quarto. O que é um reflexo e extensão do cotidiano social”, avalia. Reflexos de uma vida condicionada a esses trabalhos. Zilda Kessel conclui que não dá para diferenciar memória feminina e memória masculina. “Penso que há muitos grupos e agrupamentos possíveis. Penso também que um mesmo acontecimento pode ser percebido de maneiras absolutamente diversas por um mesmo gênero”, compreende.

A maior parte dos idosos internos está na faixa etária de 81 a 90 anos, são 49% entre homens e mulheres. Cerca de metade, fica na enfermaria, como pontua a funcionária Karine Holanda. “Porque eles são dependentes de alguma forma. De andar, de comer, de se locomover. Lá, têm mais cuidados”, define. Segundo dados do setor de assistência social Lar Torres de Melo, 40% dos idosos não mantêm contato com familiares, sendo que 53% têm filhos.

A filha de dona Francisca Camelo, 68, sempre leva os netos para visitá-la. “Carregaram a vó”, reclamam os pequenos. Depois de dois anos no Lar, ela conta que está acostumando-se. “Mas quando cheguei aqui e não conhecia ninguém, eu ficava até com vergonha”, balbucia. Voz calma, quase de menina, reitera na fala a cada momento que tem fé.  “Eu tinha 12 anos quando aceitei Jesus”, lembra. O marido faleceu e, desde então, ficou preocupada. Caiu doente também. Ela relata que a médica dizia que ela não iria resistir.  “Isso é tão crente, que nem morrer num morreu”, ri-se ao repetir o que disseram dela quando estava adoentada e se curou.

De São Joaquim, interior do Ceará, dona Francisca remonta ao passado. Com 12 anos, lavava e engomava para uma família abastada. Com 14, começou a namorar. “Quando arrumava namorado, num era só um, não. Mamãe dizia: ‘Isso é tão doida, que num arruma nem casamento’”. Dos 15, lhe vem a lembrança dos forrós. “Tinha os dias animados, que o pessoal”. Com 18, casou. “Marido bebia cachaça e deixou. Depois foi um grande empregado da palavra de Deus”.

Franzina, diz que a mãe falava que ela tinha já nascido doente dos nervos. Fica escutando o rádio. Ela fala sobre o agora. Identifica que hoje, principalmente uma viúva, tem que se cuidar. “Todo homem véi, quer frescar com a gente, quer andar agarrado. E se a gente for confirmar, nunca fica uma mulher completa”, expõe. Agarrada a um rádio sintonizado a um programa evangélico, lembra que só concluiu o primeiro ano do ensino fundamental, mas lê muito bem a Bíblia. “Hoje, eu leio qualquer palavra”, assegura feliz.

Essas mulheres representam uma geração e sua diversidade. Apesar de nenhuma ter tido envolvimento com movimentos ou grupos feministas, algumas delas, possuem visões questionadoras, forjando resistência no próprio cotidiano. Tiveram posturas de resistência contra a opressão - fosse de gênero ou de classe, fosse o ciúme ou violência praticada pelos maridos, ou fossem valores sociais estabelecidos como a obrigatoriedade do casamento para constituir família.



quarta-feira, 6 de junho de 2012

Um lar para elas e para eles


Associação civil de direito privado, o Lar Torres de Melo (Rua Júlio Pinto, 1832 – Jacarecanga. Fortaleza, Ceará) não tem fins lucrativos. Mais idoso que as senhoras e senhores que abriga, chega aos 107 anos em 2012 com sua capacidade máxima: 214 internos. A Casa presta assistência integral às pessoas idosas carentes, realizando atividades e proporcionando relacionamento com idosos do entorno, por meio de um programa de convivência. Leva em conta a Lei Orgânica de Assistência Social (n°8.742, de 7 de dezembro de 1993).
Mais do que possibilitar interação e vivências tranquilas aos rostinhos cansados, o Lar oferece tratamento médico, segurança e carinho. São 117 funcionários, e outros tantos voluntários, cerca de 70. Contudo, cuidar e dar estrutura para tanta gente exige recursos.  A ajuda sempre se faz necessária, como coloca Karine Holanda, estagiária do serviço social do Lar. Um panfleto, produzido para a instituição, explica que são aceitas  doações de alimentos, colchões, travesseiros, material para higiene pessoal e ambiental, além de doações em dinheiro. Receber e juntar tampinhas de plástico para serem recicladas foi outra alternativa encontrada para a geração de renda.

+Serviço:
Para doações:
Banco do Brasil – Conta N° 1369-2
Caixa Econômica Federal – Conta N° 1018-5
Fones: (85) 3206-6751 // 3281-3362.